Numa certa noite de Natal,
aquele homem de uma grande metrópole
queria um abrigo para passar a noite;
um réveillon, uma mulher ou mesmo um bar servia.
Mas todas essas coisas tinham muitos corações
por dentro delas.
12.23.2010
Poema de Natal, por Jorge de Lima
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12.22.2010
O HOMEM PÚBLICO N.º1 (ANTOLOGIA), por Ana Cristina César
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.
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8.21.2010
Sequências da Terra, por Amadeu Baptista
Ele ofereceu-lhe um pedaço de terra
quando se conheceram.
Quando deram o primeiro beijo
ela engoliu uma parte desse pedaço
de terra
e quando se casaram ela engoliu
a parte restante.
Nove meses depois, quando ela
pariu o primeiro filho
saiu-lhe pela vulva a terra
que ele lhe tinha dado
e que ela tinha comido.
por duas vezes,
em duas partes iguais.
E assim foi que,
quando o filho de ambos
chorou pela primeira vez,
se levantou da terra
uma labareda infinita.
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8.07.2010
por António Franco Alexandre
Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos,
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e me abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes.
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
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7.14.2010
Desistência
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7.11.2010
É tão fácil dizer que saem dos olhos das mulheres andorinhas verdes, por José Gomes Ferreira
É tão fácil dizer que saem dos olhos das mulheres andorinhas verdes
ou chamar à lua a caveira voada da flâmula dum navio pirata!
Mas a poesia - onde está?
A poesia que transforma de repente a música em lâmina
para romper a noite até à solidão dos archotes
que escurecem mais e mais
este abismo absurdo
sem astros de céu vivo
onde as pedras apodrecem
e as andorinha verdes não saem dos olhos das mulheres?
Mas a poesia - onde está?
Essa esperança convicta
de teimar na certeza do nada
com explicações
de papoilas
e esqueletos a abraçarem-se
no amor final já sem sentido de bandeiras?
Sim. Onde está?
Que palavra abre
para além da luz secreta
que os dedos dos mortos acendem no perfume das flores?
Sim. Onde está?
- Poesia de rasgar pedras.
Poesia da solidão vencida.
Poesia das pombas assassinadas.
Poesia dos homens sem morte.
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7.10.2010
A visita do amor que não virá, por João Rasteiro
Acerca do lírico amor obscuro
de mim o tempo acúleo cogitava
a morte inclinada em contrição
na geometria mais invisível ele
o rosto oxidado na cegueira fincada
a cítara dos acesos sexos lascados
os clarões do crime nas máscaras
bebendo a luz dos prodígios em bocas
líquidas sementes do cordeiro de deus
sangram os espinhos da ácida língua.
Não há lugares profusos nos alfabetos
a paisagem dos acasos - nos corações
transbordam vertiginosas superfícies
as tecedeiras sobre o linho respirando
inversas – o âmago do mistério da voz.
- Um dia alguém terá nos dentes lágrimas vivas.
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7.01.2010
por Luíza Neto Jorge
I
Despertei
com o pássaro longínquo
um rumor de fome
no seu olho fito
Atirou-se a pique
sobre a crosta da terra
a picar no mais tenro
o que eu nuca vi nem
me apalpei
Carne nao era
talvez fosse
a pedra de toque
do meu sono
Soltando as asas
desde a
serra
veio voando
direito
à varanda onde
pela manhã passeiam
pombos
Atirou-se a pique
com o seu olho louco
a descobrir
o que eu esquecia
Carne seria
lôbrega ou viva
hélice de sol puro
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6.25.2010
no more tears, por adília lopes
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
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6.20.2010
Intimidade
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"
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6.19.2010
6.17.2010
por Mário Cesariny
Dir-te-ei que os meus dias foram os teus dias o teu leito o meu leito
o teu corpo este mar
dir-te-ei que há uma rosa oculta num jardim e que ela é uma e
outra como nós fomos
estas pétalas são os teus olhos fechados
são as ondas por onde sopra o vento e nasce a cor da aurora e o grito
gelado das coisas
Dir-te-ei foi agora
cintilante mortal contado a fogo
e breve
rigoroso
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6.14.2010
as abóboras recomendam

A história centra-se na observação de um aspirante a poeta, um auto-didacta que comparece a encontros de poetas que se torna amigo apenas dos membros do género feminino, principalmente das gémeas Garmendia: Alberto Ruiz-Tagle. Personagem dúbia, Alberto destaca-se por parecer um homem culto e talvez talentoso, cujos poemas se caracterizam como impessoais e distantes.
Com o desenrolar da história, observador e observado separam-se, mas através de relatos de amigos é-nos revelada uma outra face de Alberto, um homem de crenças obscuras e múltiplas capacidades, a quem são atribuídos alguns dos actos mais hediondos praticados durante o Regime de Pinochet.
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Assim desejam as abóboras
Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar ardente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.
É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
Mas o beijo é carícia, de tão leve.
O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente
Ímpeto que não ache um abandono.
Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.
Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.
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6.09.2010
As sofridas amoras, por Luiza Neto Jorge
As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos
Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.
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6.08.2010
no farol da guia, por António Manuel Couto Viana
Pedi ao Farol da Guia,
Pra que a nau não naufragasse
Na noite que fôr o dia,
Que fosse luz e a guiasse.
E pedi mais:
Que baloiçasse no ar
Os sinais
Do tufão que vai chegar,
Pra que ao abrigo do cais
A nau achasse lugar.
E o primeiro farol
De aviso à navegação
No mundo onde nasce o Sol,
Não me disse sim nem não.
Mas a âncora ancorada,
Como fanal de bonança,
Entre os muros da esplanada,
Disse, sem me dizer nada:
- Tem esperança!
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6.05.2010
Tela, por Ana Salomé
Hoje sou eu que poso para o teu poema
Como uma modelo numa cama de flores
Que estaria
A vida inteira diante dos teus olhos
Até ser só ossos, ouro, palavras, rebentação.
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6.03.2010
Inês Lourenço
Deitar-se alguma vez nos sulcos
do sono da noite anterior,
reconhecendo como um felino doméstico
o cheiro das nossas mantas. Não
lavar os dentes e sobretudo esquecer
de baixar as persianas. Coleccionar
pontas sucessivas de cigarros, jornais
de muitos ontens e rimas
de livros lidos só três paginas. Não
endireitar a curva daquele candeeiro,
deixar as gavetas abertas
com colírios, comprimidos e roupas
à vista. Amontoar em cima da cómoda
brincos ímpares, perfumes sem tampa, pequenos espelhos
quebrados, alfinetes, cartas, rascunhos
e chávenas de chá servido há dias, deixar
calar-se o CD com os lieder de Schumann
afastando os sapatos de muitos caminhos
e a roupa de todas as horas
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5.30.2010
5.29.2010
( ai Mario, se eu te apanhava à solta em Paris )
Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão.
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.
Madeixa que se desata
Denominando-no também.
O amor não é um bem:
Quem ama padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.
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5.28.2010
A mulher caminha pelas urzes, no auge
do vento, já depois da morte, enovelada
pelos ramos que cortam a paisagem.
O homem está parado como uma ave
de pedra, batida pelo fumo. Depois, é o
corpo dela desfeito sobre os rochedos,
uma faísca que incendeia um pedaço
de madeira. O homem, amarrado a uma
mancha de ferro, contempla o corpo vazio.
Um pássaro cego cai em cima de um espelho.
É o rosto dele despedaçado, a dor.
Tudo é medonho à sua volta, a parte
de trás da luz, a humidade, a respiração
das plantas.
Jaime Rocha
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5.25.2010
Manuel Cintra
" tu eras nesse instante uma parte de mim com corpo de mulher deitada sobre a cama e toda essa parte se concentrava nos meus cinco dedos esquerdos construindo em pequenas superfícies sobre as pontas de cada um o nome desse pedaço da tua coxa interna, estendida ao comprido em frente do resto do teu corpo. E a calma, cor de folha, que se me infiltrava pelo sangue até chegar aos olhos, desaguava no respirar do quarto, encontrando o cheiro da maçã apenas trincada, que era o fim da linha do meu outro olhar, o olfato. "
Eu era um homem, e escrevia, não que aspirasse pela fama, mas com um certo desdém pelo silêncio no ouvido alheio.
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5.22.2010
Paulo Pais
Falamos com os vivos quando já estão mortos
olhamo-los mas já não os vemos
mesmo quando trocamos cigarros e livros e piadas de mau gosto
estão aí à nossa frente tocamos-lhes as mãos
ajeitamos-lhes a gravata sacudimos-lhes a caspa do ombro
a alguns afagamos-lhes a nuca
dormimos com eles
não deixaremos de manter compromissos fáceis de não cumprir
marcaremos viagens a sítios que não há
- é bom fingir que gostamos uns dos outros
em que podem beneficiar com a morte para além
do prejuízo da sua inarticulável ausência?
basta uma bandeira ou isso dois ou três objectos
de afecto um gesto que escorre a memória
(por cada um que parte é um que não morre)
apesar das ruas desertas continua
a vontade do amor e a alegria crua dos rapazes
queimando gatos vivos
fisgando pardais
ouvirão eles o que não dizemos?
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5.18.2010
Cosmocópula
I
Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras.
II
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro
Natália Correia
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5.17.2010
Dentro das imagens
Os poemas têm veneno na boca.
Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.
Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.
Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.
São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.
Isabel de Sá
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5.15.2010
tive muita sorte contigo embora
te tenha escolhido a dedo
mas o meu dedo é pouco ajuizado
em suma não é de confiança
mesmo que saiba melhor do que eu
as coisas acontecem àqueles que acreditam
no alcance de um dedo bem apontado
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5.13.2010
acabei agora de comer
Acabei agora de comer um campo de tulipas Não sei o que fazer com tanta beleza nas tripas Jorge Sousa Braga O Poeta Nu |
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5.10.2010
amanhã.
queria aqui deixar.
Por exemplo.
Levanto-me cedo, tomo o pequeno almoço
fumo um cigarro, ou quantos?
Depois de pronta desço
das escadas os três lanços.
E logo em baixo café, tabaco, jornais.
Inusitado no poema –
queriam um lírio, uma açucena –
e não coisas tão banais?
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5.08.2010
A meias
Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo
um cigarro e tu fumas do
meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu. Dá-te
gozo esse roubar
de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.
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5.06.2010
Calafrio
Foi ele quem me apresentou. Pétrea
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5.04.2010
A mulher mostra-se na luz, entre a folhagem.
A cor dos seus cabelos está intacta. Ela tece
um caminho para o homem, mas as mãos dele
colaram-se ao cimento, os seus olhos pararam
no tempo. Todo o seu corpo se assemelha agora
a uma árvore acorrentada pelas heras onde não
entra a música, nem o tempo que separa os dias.
As ondas sustiveram o movimento em direcção
à praia, regressando ao outro lado do horizonte.
As nuvens caíram. As aves perderam as asas.
Tudo, até os cães, desapareceu na escuridão.
Apenas umas pétalas esvoaçaram ao acaso,
seguindo o rasto dos morcegos, num último
torpor, numa vergonha.
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5.03.2010
Acasos
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5.01.2010
faz-me perguntas
pergunta-me que sonho tive no texto da noite
pergunta-me se sofro porque tudo abrasas.
Maria Gabriela Llansol
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4.26.2010
Baía de Brucoli
arranjar o cabelo com o gesto de há pouco
romper por entre as mesas sentar-se junto e
beijá-lo longamente (poderia até beber do mesmo lado do copo)
depois partiriam ecstasiados num qualquer
carro por perto disponível
a trezentos quilómetros hora
deixando a conta por pagar abandonado
um ou outro objecto pessoal
rumo a nenhures
consentiriam acordos e promessas por estimativa
pelo ângulo do cio mediriam a rota da viagem
a arena invisível onde se amar até ao ódio
irrelevante que em breve à meia noite a cama
seja pejada de abóboras e que a roupa atirada pelo chão
exale um irritante odor a celulose
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4.25.2010
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, in Mensagem
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4.23.2010
Anda de salto alto, meia preta,
o coração ao pé da boca e,
mais que tudo isso, ver passar
ao pé da porta
uma figura como esta.
Helga Moreira
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4.19.2010
Os Homens Gloriosos
Foto: Ana Cardoso
Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.
Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.
Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!
Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!
Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.
Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.
Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!
Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...
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Helga Moreira
a chávena ainda quente do café,
e o corpo todo à escuta.
No sono entrevi o teu olhar e
ao visitar-te, excessivamente te beijei.
Entre temor, entre comas, os lugares
que habito são apenas pontos
de esquecimento e fuga.
Tenho medo, por vezes, de estar em casa,
outras, de sair, não sei o que me persegue
ou persigo, movo-me apenas
por entre odores, escombros, e aflita
com perigos indefiníveis.
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4.15.2010
Nuvens
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.
Que clamor, que clamores mas em silêncio
na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.
Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.
Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.
António Ramos Rosa
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4.14.2010
Manuel Cintra
Afinal o sol tremendo sempre vem
Consome com os dentes o cinzento
E ardem loucos os vermelhos
Que cobrem a erva que me doira
O chão do peito
Afinal então batem-me aqui
Este tambor de sangue
Como um sexo de tempo
Pela vida dentro
E estou para gritar
Então não grito.
Agarro-te na boca
E venho contigo
num abraço
Fazer amor à multidão
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4.10.2010
a poesia e os nossos corações de abóboras quase dementes

Uma bala de mel que penetrou o peito da estátua. Que furou pelo pescoço e inundou o crânio. Que adoçou os lábios. Que contaminou os olhos.
A loucura é a máxima pretensão cardíaca. Induzi-la por letras é um artefacto muito raro. Requer mãos que sejam simultaneamente patas, barbatanas, periscópios em crateras de vulcão, aquários intactos nos escombros de um terramoto.
A loucura não é uma conclusão de sofá, um apontamento da inteligência.
Todos os equívocos nascem da distinção entre poema e poeta. Como entre poema e leitor. Como entre poeta e leitor. Acordar é abrir um livro de poemas. Adormecer é abrir um outro livro de poemas.
Ervas que se queimam por contacto com o corpo, vapor de suor num cachimbo.
Tudo o que pode ser visto, escutado, inspirado, provado, tocado, forma placenta cinco vezes real que treme. Só há, portanto, um alimento: a imanência. O acto sexual é a abertura de um poço de líquido amniótico.
Creio que o amor está sujeito ao Princípio da Incerteza de Heisenberg: quanto mais sabemos da sua velocidade, menos sabemos da sua posição, e vice-versa. O amor é, por isso, todas as graduações de velocidade e posição.
Reforço o que disse anteriormente: se um poema não tomou de assalto um homem, das duas uma: ou não era um poema, ou não era um homem. Resolver em sede de tribunal. Ou na rua.
Vasco Gato, in "omertà" quasi (2007)
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4.08.2010
in Reconhecimento
(A voz desta mulher perturba-me; por esse motivo comprei um livro seu )
onde há raparigas há
roupa interior de molho
água encarnada nos olhos
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4.06.2010
Masturbação, por Maria Teresa Horta
o nosso centro
onde os dedos escorregam devagar
e logo tornam onde nesse
centro
õs dedos esfregam - correm
e voltam sem cessar
e então são os meus
já os teus dedos
e são meus dedos
já a tua boca
que vai sorvendo os lábios
dessa boca
que manipulo - conduzo
pensando em tua boca
Ardencia funda
planta em movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde
E todo o corpo
é esse movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde
E todo o corpo
é esse movimento
em torno
em volta
no centro desses lábios
que a febre toma
engrossa
e vai cedendo a pouco e pouco
nos dedos e na palma
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4.04.2010
capitão romance
(Manel Cruz, também mereces)
e aqui vos deixamos um excerto da Capitão Romance dos Ornatos Violeta.
Não vou procurar quem espero se o que eu quero é navegar pelo tamanho das ondas:
conto não voltar
Parto rumo à primavera que em meu fundo se escondeu
Esqueço tudo do que eu sou capaz
Hoje o mar sou eu
Esperam-me ondas que persistem
Nunca param de bater
Esperam-me homens que desistem antes de morrer
Por querer mais do que a vida sou a sombra do que eu sou
E ao fim não toquei em nada do que em mim tocou
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3.29.2010
o sítio nem era mau de todo
e umas boas gargalhadas
ela ria-se de tudo
e as cortinas eram amarelas
e eu acabei
saí de cima
e antes dela ir à casa de banho
procurou debaixo da cama e atirou-me
um velho trapo.
estava duro
teso com o esperma
de outros homens.
limpei-me aos lençóis.
quando regressou
e se curvou
vi todo aquele traseiro
e pôs Mozart
a tocar.
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3.27.2010
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.
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3.26.2010
outro sempre murcho
ora bem,
a interpretação que faço do fenómeno
embora duvidando que entusiasme alguém
é a seguinte:
um pressente coisas de que o outro nem suspeita
coitado do primeiro
quando não há nada
coitado do segundo
se quiser arrebitar
Publicada por as abóboras mecânicas à(s) 07:31 0 comentários
3.25.2010
de deixar para sempre o GPS;
não vás de carro, apanha antes boleia
de um camião escuro, daqueles que
vão carregar comida ao estrangeiro,
e não voltes nele ao país de fome.
Quando vires um bosque já distante,
a dias infinitos de viagem
para lá da fronteira do teu povo,
diz ao piloto autómato que pare,
que tens enorme urgência em urinar,
mas traduz este verbo para gíria:
os autómatos vivem em silêncio
e o seu vocabulário é curto e grosso.
Depois de ele encostar o camião,
diz que não demoras, que vens já,
e internas-te no bosque até achares
o primeiro caminho, e vais por ele
dia e noite. Não penses ou perguntes
e não sintas saudade nem fadiga,
e ao saberes que o tempo te levou
o passado e o futuro, andando tu
em uma rota larga, encontrarás
a planície sem fim do esquecimento.
Chegaste onde devias. Adormece
e não sonhes sequer em regressar.
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PADRÕES POÉTICOS & LÉGUAS DE POEMAS
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3.24.2010
a pele
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.
Luís Miguel Nava
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3.23.2010
Ninguém venha me dar vida
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferido,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser,
e não quero me encontrar,
que estou dentro de um navio,
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.
Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis quem não me quis.
Cecília Meireles
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3.22.2010
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.
António Franco Alexandre
Publicada por as abóboras mecânicas à(s) 14:16 0 comentários
3.21.2010
pintar fora da margem
Sejamos modernos, sejamos radicais.
Como bem sabes não somos eternos.
E além do mais eu não digo nada aos teus pais.
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O nosso amor parecia uma história de fadas
o encanto girava que nem em quatro rodas
depois as rodas deram umas guinadas
e descambou tudo num conto de fodas.
Publicada por as abóboras mecânicas à(s) 17:05 0 comentários