7.14.2010

Desistência



Não percebes a tradução que, para uma Língua longínqua, fizeram do teu pedido de socorro. Estás frente a ela como frente a palavras de um outro. E, no entanto, essas palavras – na língua original, na tua – eram as mais capazes de te colocar novamente no mundo. Sem reconheceres já sequer o tom que gritaste, e enojado com o facto de terem traduzido o teu pedido de socorro para uma Língua desconhecida – eis que desistes e, finalmente, aceitas, com bons modos, a impossibilidade de alguém te ouvir.

"Breves notas sobre o medo", Gonçalo M. Tavares

7.11.2010

É tão fácil dizer que saem dos olhos das mulheres andorinhas verdes, por José Gomes Ferreira




É tão fácil dizer que saem dos olhos das mulheres andorinhas verdes
ou chamar à lua a caveira voada da flâmula dum navio pirata!

Mas a poesia - onde está?

A poesia que transforma de repente a música em lâmina
para romper a noite até à solidão dos archotes
que escurecem mais e mais
este abismo absurdo
sem astros de céu vivo
onde as pedras apodrecem
e as andorinha verdes não saem dos olhos das mulheres?

Mas a poesia - onde está?

Essa esperança convicta
de teimar na certeza do nada
com explicações
de papoilas
e esqueletos a abraçarem-se
no amor final já sem sentido de bandeiras?

Sim. Onde está?

Que palavra abre
para além da luz secreta
que os dedos dos mortos acendem no perfume das flores?

Sim. Onde está?

- Poesia de rasgar pedras.
Poesia da solidão vencida.
Poesia das pombas assassinadas.
Poesia dos homens sem morte.

7.10.2010

A visita do amor que não virá, por João Rasteiro

Acerca do lírico amor obscuro
de mim o tempo acúleo cogitava
a morte inclinada em contrição
na geometria mais invisível ele
o rosto oxidado na cegueira fincada
a cítara dos acesos sexos lascados
os clarões do crime nas máscaras
bebendo a luz dos prodígios em bocas
líquidas sementes do cordeiro de deus
sangram os espinhos da ácida língua.

Não há lugares profusos nos alfabetos
a paisagem dos acasos - nos corações
transbordam vertiginosas superfícies
as tecedeiras sobre o linho respirando
inversas – o âmago do mistério da voz.

- Um dia alguém terá nos dentes lágrimas vivas.

7.01.2010

por Luíza Neto Jorge




I

Despertei
com o pássaro longínquo
um rumor de fome
no seu olho fito

Atirou-se a pique
sobre a crosta da terra
a picar no mais tenro
o que eu nuca vi nem
me apalpei

Carne nao era
talvez fosse
a pedra de toque
do meu sono

Soltando as asas
desde a
serra
veio voando
direito
à varanda onde
pela manhã passeiam
pombos

Atirou-se a pique
com o seu olho louco
a descobrir
o que eu esquecia

Carne seria
lôbrega ou viva
hélice de sol puro