4.26.2010

Baía de Brucoli


A felicidade agora era ela levantar-se
arranjar o cabelo com o gesto de há pouco
romper por entre as mesas sentar-se junto e
beijá-lo longamente (poderia até beber do mesmo lado do copo)
depois partiriam ecstasiados num qualquer
carro por perto disponível
a trezentos quilómetros hora
deixando a conta por pagar abandonado
um ou outro objecto pessoal
rumo a nenhures
consentiriam acordos e promessas por estimativa
pelo ângulo do cio mediriam a rota da viagem
a arena invisível onde se amar até ao ódio
irrelevante que em breve à meia noite a cama
seja pejada de abóboras e que a roupa atirada pelo chão
exale um irritante odor a celulose

Paulo Pais

4.25.2010

Mar Português


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, in Mensagem


(ligeiramente relacionado com o 25 de Abril)

4.23.2010


Foto: Lithium Picnic

Anda de salto alto, meia preta,

o coração ao pé da boca e,

mais que tudo isso, ver passar

ao pé da porta

uma figura como esta.


Helga Moreira

4.19.2010

Os Homens Gloriosos



Foto: Ana Cardoso


Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.

Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!

Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!

Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.

Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...

Cecília Meireles

Helga Moreira




Apago cigarro após cigarro,
a chávena ainda quente do café,
e o corpo todo à escuta.
No sono entrevi o teu olhar e
ao visitar-te, excessivamente te beijei.
Entre temor, entre comas, os lugares
que habito são apenas pontos
de esquecimento e fuga.
Tenho medo, por vezes, de estar em casa,
outras, de sair, não sei o que me persegue
ou persigo, movo-me apenas
por entre odores, escombros, e aflita
com perigos indefiníveis.

4.15.2010

Nuvens




Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas
locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
e luminoso, tão suave na visão que se dilata.

Que clamor, que clamores mas em silêncio
na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.

Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.
Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.



António Ramos Rosa

4.14.2010

Manuel Cintra

É um livro do lado de dentro; chama-se " do lado de dentro"; é pequeno, quase de bolso e insere-se na COLECÇÃO fORMA; na capa existe uma quase esfera verde. E se o leitor, ai o leitor !, ousasse pegar-lhe, eu lhe diria que acabaria a cuspir flores. Manuel Cintra até ao osso, digo.

Afinal o sol tremendo sempre vem
Consome com os dentes o cinzento
E ardem loucos os vermelhos
Que cobrem a erva que me doira
O chão do peito

Afinal então batem-me aqui
Este tambor de sangue
Como um sexo de tempo
Pela vida dentro
E estou para gritar

(parece tão simples, agora eu dava-te a mão, sorria com força, dizia-te as cores da esperança que fui catar com um ancinho, punha-a suave no teu bolso e ardíamos os lábios abertos ao temporal de acreditar)

Então não grito.
Agarro-te na boca
E venho contigo
num abraço
Fazer amor à multidão

4.10.2010

a poesia e os nossos corações de abóboras quase dementes





Uma bala de mel que penetrou o peito da estátua. Que furou pelo pescoço e inundou o crânio. Que adoçou os lábios. Que contaminou os olhos.

A loucura é a máxima pretensão cardíaca. Induzi-la por letras é um artefacto muito raro. Requer mãos que sejam simultaneamente patas, barbatanas, periscópios em crateras de vulcão, aquários intactos nos escombros de um terramoto.

A loucura não é uma conclusão de sofá, um apontamento da inteligência.

Todos os equívocos nascem da distinção entre poema e poeta. Como entre poema e leitor. Como entre poeta e leitor. Acordar é abrir um livro de poemas. Adormecer é abrir um outro livro de poemas.

Ervas que se queimam por contacto com o corpo, vapor de suor num cachimbo.
A poesia é o único tóxico que negoceia vida.

Tudo o que pode ser visto, escutado, inspirado, provado, tocado, forma placenta cinco vezes real que treme. Só há, portanto, um alimento: a imanência. O acto sexual é a abertura de um poço de líquido amniótico.

Creio que o amor está sujeito ao Princípio da Incerteza de Heisenberg: quanto mais sabemos da sua velocidade, menos sabemos da sua posição, e vice-versa. O amor é, por isso, todas as graduações de velocidade e posição.

Reforço o que disse anteriormente: se um poema não tomou de assalto um homem, das duas uma: ou não era um poema, ou não era um homem. Resolver em sede de tribunal. Ou na rua.
O único veneno é uma saúde de ferro, sem uma febrezinha sequer para compor o coração.

Vasco Gato, in "omertà" quasi (2007)

4.08.2010

in Reconhecimento

(A voz desta mulher perturba-me; por esse motivo comprei um livro seu )


onde há raparigas há
roupa interior de molho
água encarnada nos olhos

Bénédicte Houart

4.06.2010

Masturbação, por Maria Teresa Horta




Eis o centro do corpo
o nosso centro
onde os dedos escorregam devagar
e logo tornam onde nesse
centro
õs dedos esfregam - correm
e voltam sem cessar


e então são os meus
já os teus dedos


e são meus dedos
já a tua boca


que vai sorvendo os lábios
dessa boca
que manipulo - conduzo
pensando em tua boca


Ardencia funda
planta em movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde


E todo o corpo
é esse movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde


E todo o corpo
é esse movimento
em torno
em volta
no centro desses lábios


que a febre toma
engrossa
e vai cedendo a pouco e pouco
nos dedos e na palma

4.04.2010

capitão romance

(Manel Cruz, também mereces)
e aqui vos deixamos um excerto da Capitão Romance dos Ornatos Violeta.


Não vou procurar quem espero se o que eu quero é navegar pelo tamanho das ondas:
conto não voltar

Parto rumo à primavera que em meu fundo se escondeu
Esqueço tudo do que eu sou capaz
Hoje o mar sou eu
Esperam-me ondas que persistem
Nunca param de bater
Esperam-me homens que desistem antes de morrer
Por querer mais do que a vida sou a sombra do que eu sou
E ao fim não toquei em nada do que em mim tocou