1.24.2010

espero que sim, que haja essa noite comum.

deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos


inocentemente felizes
a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores


Francisco Duarte Mangas

1.21.2010

Só porque a Professora Ana Cristina aprecia.

Vamos morrer, mas somos sensatos
e à noite, debaixo da cama
deixamos, simétricos e exactos
o medo e os sapatos

Pedro Mexia

1.15.2010

Ana Cardoso a botar ajavardamento

Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que plas aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

Florbela Espanca

1.08.2010

Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiam antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.


Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.






maria do rosário pedreira

1.07.2010

Musa

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

Sophia de Mello Breyner

1.06.2010

Ana Cardoso partilhando o Miguel Torga (e o gerúndio)


Foto por Ana Cardoso


Amor


A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.


Miguel Torga