5.30.2010

5.29.2010

( ai Mario, se eu te apanhava à solta em Paris )


Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão.
É mal do coração
E com ele se endoidece.

O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.
Madeixa que se desata
Denominando-no também.

O amor não é um bem:
Quem ama padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.

Mário de Sá Carneiro

5.28.2010


Foto por: sottiria em photobucket.com


A mulher caminha pelas urzes, no auge

do vento, já depois da morte, enovelada

pelos ramos que cortam a paisagem.

O homem está parado como uma ave

de pedra, batida pelo fumo. Depois, é o

corpo dela desfeito sobre os rochedos,

uma faísca que incendeia um pedaço

de madeira. O homem, amarrado a uma

mancha de ferro, contempla o corpo vazio.

Um pássaro cego cai em cima de um espelho.

É o rosto dele despedaçado, a dor.

Tudo é medonho à sua volta, a parte

de trás da luz, a humidade, a respiração

das plantas.


Jaime Rocha





5.25.2010

Manuel Cintra




O desenrolar lento, falange após falange, com que se desdobra os dedos e se atravessa sons e as manchas de luz, até chegar à tinta e ao papel, o tremor com que se teima em pregar marcos no tempo, assim como certos beijos pretendem, no tocar de lábios, deformar os corpos e melhorá-los, assim o contacto furtivo entre nós e a falsa paragem de tempo que nada muda, mas por vezes chama a atenção sobre a consciência daquilo que penetra os minutos e o que deles, como a nata presa no escoador de leite, nos vai alimentando o aspecto das rugas na pele.

" tu eras nesse instante uma parte de mim com corpo de mulher deitada sobre a cama e toda essa parte se concentrava nos meus cinco dedos esquerdos construindo em pequenas superfícies sobre as pontas de cada um o nome desse pedaço da tua coxa interna, estendida ao comprido em frente do resto do teu corpo. E a calma, cor de folha, que se me infiltrava pelo sangue até chegar aos olhos, desaguava no respirar do quarto, encontrando o cheiro da maçã apenas trincada, que era o fim da linha do meu outro olhar, o olfato. "

Eu era um homem, e escrevia, não que aspirasse pela fama, mas com um certo desdém pelo silêncio no ouvido alheio.

5.22.2010

Paulo Pais




Falamos com os vivos quando já estão mortos
olhamo-los mas já não os vemos
mesmo quando trocamos cigarros e livros e piadas de mau gosto

estão aí à nossa frente tocamos-lhes as mãos
ajeitamos-lhes a gravata sacudimos-lhes a caspa do ombro
a alguns afagamos-lhes a nuca
dormimos com eles

não deixaremos de manter compromissos fáceis de não cumprir
marcaremos viagens a sítios que não há
- é bom fingir que gostamos uns dos outros

em que podem beneficiar com a morte para além
do prejuízo da sua inarticulável ausência?

basta uma bandeira ou isso dois ou três objectos
de afecto um gesto que escorre a memória
(por cada um que parte é um que não morre)

apesar das ruas desertas continua
a vontade do amor e a alegria crua dos rapazes
queimando gatos vivos
fisgando pardais

ouvirão eles o que não dizemos?

5.18.2010

Cosmocópula



I

Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras.


II

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta

dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro


Natália Correia

5.17.2010

Dentro das imagens

Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida

plantei a árvore

sem saber quem era.


Em que parte do planeta

há mais ódio? A matéria

erosiva transforma o corpo

e não há regresso. Não

restará um monte de estrume.


Em todo o lado

parece que o mundo em desordem

pouco a pouco enlouqueceu

e os homens atam a corda

à espera que aconteça.


São infelizes

mas não o suficiente.

Não sabem dizer

por que se esquecem de amar.


Isabel de Sá

5.15.2010




tive muita sorte contigo embora
te tenha escolhido a dedo
mas o meu dedo é pouco ajuizado
em suma não é de confiança
mesmo que saiba melhor do que eu
as coisas acontecem àqueles que acreditam
no alcance de um dedo bem apontado

Bénédicte Houart

5.13.2010

acabei agora de comer



Acabei agora de comer
um campo de tulipas
Não sei o que fazer
com tanta beleza nas tripas



Jorge Sousa Braga
O Poeta Nu

5.10.2010

amanhã.




Um outro assunto isento
queria aqui deixar.
Por exemplo.
Levanto-me cedo, tomo o pequeno almoço
fumo um cigarro, ou quantos?

Depois de pronta desço
das escadas os três lanços.
E logo em baixo café, tabaco, jornais.
Inusitado no poema –
queriam um lírio, uma açucena –
e não coisas tão banais?


Helga Moreira

5.08.2010

A meias




Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo
um cigarro e tu fumas do
meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu. Dá-te
gozo esse roubar
de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.

João Luís Barreto Guimarães

5.06.2010

Calafrio



Foi ele quem me apresentou. Pétrea

nívea
exangue. Meus lábios: à face da morte.
Nunca a
tinha beijado antes.

João Luís Barreto Guimarães

5.04.2010

Foto: Ana Cardoso

A mulher mostra-se na luz, entre a folhagem.
A cor dos seus cabelos está intacta. Ela tece
um caminho para o homem, mas as mãos dele
colaram-se ao cimento, os seus olhos pararam
no tempo. Todo o seu corpo se assemelha agora
a uma árvore acorrentada pelas heras onde não
entra a música, nem o tempo que separa os dias.
As ondas sustiveram o movimento em direcção
à praia, regressando ao outro lado do horizonte.
As nuvens caíram. As aves perderam as asas.
Tudo, até os cães, desapareceu na escuridão.
Apenas umas pétalas esvoaçaram ao acaso,
seguindo o rasto dos morcegos, num último
torpor, numa vergonha.

Jaime Rocha

5.03.2010

Acasos



Como se da boca de um louco, há muitos anos desprovido de razão, saísse de súbito uma fórmula verbal capaz de explicar finalmente o mundo, certos encontros do acaso juntam, definitivamente, e depois de muitos anos de desespero e desencontros, um homem e uma mulher.
Gonçalo M. Tavares

5.01.2010




Pergunta-me
faz-me perguntas
pergunta-me que sonho tive no texto da noite
pergunta-me se sofro porque tudo abrasas.

Maria Gabriela Llansol