3.29.2010

o sítio nem era mau de todo




ela tinha umas boas ancas
e umas boas gargalhadas
ela ria-se de tudo
e as cortinas eram amarelas
e eu acabei
saí de cima
e antes dela ir à casa de banho
procurou debaixo da cama e atirou-me
um velho trapo.
estava duro
teso com o esperma
de outros homens.
limpei-me aos lençóis.

quando regressou
e se curvou
vi todo aquele traseiro
e pôs Mozart
a tocar.


Charles Bukowski

3.27.2010


Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.


Amalia Bautista

3.26.2010




tenho um mamilo sempre erecto e
outro sempre murcho
ora bem,
a interpretação que faço do fenómeno
embora duvidando que entusiasme alguém
é a seguinte:
um pressente coisas de que o outro nem suspeita
coitado do primeiro
quando não há nada
coitado do segundo
se quiser arrebitar


Bénédicte Houart, in "Vida:Variações"

3.25.2010

Emigra da cidade e não te esqueças
de deixar para sempre o GPS;
não vás de carro, apanha antes boleia
de um camião escuro, daqueles que
vão carregar comida ao estrangeiro,
e não voltes nele ao país de fome.
Quando vires um bosque já distante,
a dias infinitos de viagem
para lá da fronteira do teu povo,
diz ao piloto autómato que pare,
que tens enorme urgência em urinar,
mas traduz este verbo para gíria:
os autómatos vivem em silêncio
e o seu vocabulário é curto e grosso.
Depois de ele encostar o camião,
diz que não demoras, que vens já,
e internas-te no bosque até achares
o primeiro caminho, e vais por ele
dia e noite. Não penses ou perguntes
e não sintas saudade nem fadiga,
e ao saberes que o tempo te levou
o passado e o futuro, andando tu
em uma rota larga, encontrarás
a planície sem fim do esquecimento.
Chegaste onde devias. Adormece
e não sonhes sequer em regressar.

Nuno Dempster

PADRÕES POÉTICOS & LÉGUAS DE POEMAS

Obrigatório aparecer!

25 de Março, Quinta-Feira
15.00 h

Casa-Museu Abel Salazar
( http://www.geira.pt/CMAbelSalazar/ )

3.24.2010

a pele



A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.


Luís Miguel Nava

3.23.2010

Ninguém venha me dar vida




Ninguém venha me dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferido,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser,
e não quero me encontrar,
que estou dentro de um navio,
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações, por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e os corais.
Fim ditoso, hora feliz:
guardai meu amor sem preço,
que só quis quem não me quis.

Cecília Meireles

3.22.2010




quero dizer-te: não morras.

Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.


António Franco Alexandre
( imagem do filme " The Reader " )

3.21.2010

pintar fora da margem

Sejamos modernos, sejamos radicais.
Como bem sabes não somos eternos.
E além do mais eu não digo nada aos teus pais.

__

O nosso amor parecia uma história de fadas
o encanto girava que nem em quatro rodas
depois as rodas deram umas guinadas
e descambou tudo num conto de fodas.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues
in Dióspiro
( depois da fruição devida destes poemas, só me ocorre dizer que me pesa aos ombros a leveza destes 17 anos - maravilha ! )

Dia da Poesia

E fosse eu
A sede eterna de te ter
Pudesse eu esquecer
Como arde o amor no seu apogeu

E pudesse eu
Deixar-te morrer
Não levasses em ti o ser
Do que existe e fazes teu

Ana Cardoso, talvez por ser dia da poesia


Na eventualidade de ter escapado a alguém, hoje é Dia da Poesia, situação que não poderia ser ignorada por um projecto como o nosso.
Assim, deixo um poema escrito por mim, ontem (diz que é fresquinho), como quem deixa aqui a ideia de que é bonito escrever, e partilhar a poesia.

3.20.2010

é Primavera: que queime




As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi



Ruy Belo

Despeço-me da Terra da Alegria

3.18.2010


Toca-me o sangue. Peço-te que me toques

o sangue. Escuta este rumor
dentro do meu peito, esta palavra enlaçada
a uma pedra que arde dentro da terra.


Amadeu Baptista
( fotografia de José d´Almeida e Maria Flores )

3.17.2010

Daniel Maia-Pinto Rodrigues





Perdeste o isqueiro
e estás perturbada
e digamos que tens razão
porque deixaste para trás
qualquer pertence da realidade

Hesitas se hás-de regressar ao seu encontro
mas talvez te percas exactamente aí
ao regressares

Olha melhor as estrelas
é noite
e estamos à ilharga do tempo


em O Afastamento Está Ali Sentado
( foto por Franco Giovanella )

3.12.2010

anunciação

Profetiza-se um encontro delicioso ainda no segundo período na Casa Museu Abel Salazar. Deixem-se salivar !

3.11.2010

janela indiscreta

O jardim que rodeia a casa antiga
é um sobressalto no silêncio
penumbroso da luz. A sombra
das tuas pernas, movendo-se,
desperta-me a boca. Um arbusto que pulsa como um peixe
percorre-me repousadamente.

No limite contemplado das janelas dignas
de oitocentos, a névoa desce com a noite,
estreita o vento na fralda da camisa, frustra
a inquieta adolescência de um rosto impúdico.
Abre janelas ao murmúrio do tempo,
ao vagaroso esvoaçar
do pensamento. Irremediavelmente, a barba cresce
fiel à distância.

Jorge Velhote

3.09.2010

viva ao senhor Luís Viana, a poesia e o ajavardamento agradecem

a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome

Paulo Leminsky

3.02.2010

hoje não é um dia para ser dia, não acham?

Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

António José Forte